quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Peter Singer: O Filósofo e o Pregador

Recentemente visitei a feira do livro em Peniche, no entanto sem intenções de comprar nada. Nela passei os primeiros 10 minutos a olhar para os livros que me poderiam interessar, assim como o preço que neles estava marcado. Felizmente, apesar de terem desconto, este não era maior do que aquele que tenho na fnac com o cartão, pelo que não compensava realmente comprar nenhum nesta feira.

O problema destas feiras é que vamos olhando e olhando até que o nosso olhar acaba por ficar fixo nalgum livro. Neste caso, no Escritos sobre uma vida Ética de Peter Singer. Estava a um preço bastante bom, era um extremo desperdício deixá-lo ali exposto ao pó e assim o acabei por comprar.

Bastou ler alguma páginas para perceber que tinha acertado em cheio na compra. Era exactamente o tipo de livro com que me identifico. Deste modo, deixo aqui as razões que levaram a esta identificação misturadas com algumas notas retiradas do capítulo Especialistas em moral.

O meio onde cresci inserido (contextualização)...
Sempre vivi num meio rural, tendo sido educado segundo os costumes do mesmo. Lembro-me de a minha mãe me obrigar a ir à missa todos os Domingos, dia em que vestia a melhor roupa que tinha e o fio de ouro que me tinham oferecido quando me baptizei. Tal como a missa, também era costume ir à catequese - uma espécie de aulas sobre Deus, segundo a religião Católica, que eram dadas na Igreja.

Recordo-me de querer ficar a dormir e a minha mãe acordar-me para me despachar, ou chegaria atrasado à missa. Um atraso que me valeria ficar cerca de uma hora em pé a assistir o sermão, pois os assentos já estariam todos ocupados. Na altura, talvez por ser mais jovem, nunca pensei muito sobre o facto de haver tantas pessoas dispostas a ouvir o que o padre dizia. Não se tratava apenas de rezar.

Pessoalmente, devo confessar que distraia-me mais vezes do que aquelas que ficava atento. No entanto, na catequese apenas me permitia a uma coisa, a estar focado na mensagem que me estava a ser transmitida pelo(a) catequista. Aprendi bastantes coisas, muitas delas boas, como não roubar ou levantar falsos testemunhos, se havia más, pelo menos naquela altura, nunca pensei nelas. Talvez porque o próprio meio onde estava inserido ignorava que estas houvessem e assim me educaram.

Cresci e, consequentemente, amadureci. Hoje sou uma pessoa nova e coloco em questão coisas que antes não colocava em questão, nomeadamente as que me foram pregadas na Igreja. É verdade que há coisas boas que me foram transmitidas, no entanto há também outras que considero erradas, mas que me foram pregadas na cabeça. Coisas sem qualquer fundamento, que nunca poderão vir a ser consideradas certas num Mundo onde apenas Deus é o centro.

Foi este motivo a razão pelo qual este livro me chamou a atenção. Ele aborda a diferença entre um pregador e um filósofo moral.

O Filósofo Moral e o Pregador...

Não faz parte da actividade profissional dos filósofos morais dizer às pessoas o que devem ou não devem fazer. [...] Um filósofo moral, enquanto tal, não tem qualquer informação especial acerca daquilo que é certo e daquilo que é errado que não esteja ao alcance do público em geral, nem tem qualquer razão para realizar aquelas funções exortativas que são desempenhadas tão adequadamente pelos padres, políticos e líderes de opinião [...]
C.D.Broad, Ethics and the history of philosophy

Afirmações como estas são comuns, os argumentos a seu favor nem tanto. Dizem-nos que o papel do filósofo moral não é igual ao do pregador. Porque não?
Peter Singer

Estas duas citações, ambas retiradas de Escritos sobre uma vida ética, vão ser a base de todo o artigo que vou escrever a partir daqui. A primeira alerta-nos para o facto de não há qualquer razão para um filósofo desempenhar as funções de um padre (pregador), pois ele não possui nenhuma característica privilegiada que este último não tenha. Posição que Peter Singer refuta ao longo do capítulo.

Ele diz que o homem moralmente bom apenas não precisaria de ser um homem reflexivo caso o código moral da nossa sociedade fosse perfeito e incontroverso. Apenas nesse caso, o Homem poderia limitar-se a viver em conformidade com o código sem que tivesse de reflectir sobre o mesmo.

No entanto, como a sociedade não tem normas perfeitas ou consensuais sobre várias questões de escolha múltipla, é dever do homem moralmente bom saber resolver esses conflitos, saber o que fazer. É aqui que o papel do conhecimento ganha importância. Saber o que fazer exige informação, é ela que nos vai permitir chegar à hipótese certa, ou pelo menos, a mais fundamentada.  

Só após se possuir todos os dados sobre estas questões, é que estas poderão ser avaliadas e associadas às perspectivas morais em que se acredita. Em que, consoante o método moral que se utilizar, este pode ter em foco escolher a acção que produz mais felicidade e menos sofrimento, por exemplo, havendo uma tentativa em nos colocarmos na posição daqueles que vão ser afectados pela acção.

Com isto, Singer defende que parece realmente haver uma especialidade em moral, em que o filósofo apresenta um papel de destaque, ao contrário do mencionado na primeira citação. Conclui-se assim, que realmente há uma característica que distingue um filósofo moral de um pregador, podendo esta ser resumida em apenas uma palavra - conhecimento.

Além disso, há ainda o facto de um filósofo ter competências acima da média do homem comum, nomeadamente no que toca à argumentação e à detecção de inferências inválidas. Se associarmos isso ao facto de o filósofo ter tempo para pensar e recolher informações sobre uma determinada questão, algo que o homem comum não tem (pois ele possui outra ocupação que não  lhe confere tanto tempo para reflectir), então acho que é bastante óbvio que este tem capacidades especiais bem diferentes daquelas que um pregador tem. Concedendo-lhe todo o direito de dizer às pessoas o que devem ou não fazer, com base nos juízos morais realizados após várias reflexões.

Pessoalmente, após estes últimos parágrafos gostava  que as pessoas considerassem e entendessem a credibilidade de um filósofo moral, porém tal não acontece completamente. O próprio Singer transmite-o quando se expressa sobre o ponto de vista de outros filósofos.

A ideia de Ryle é a de que conhecer a diferença entre o certo e o errado implica preocupar-nos com ela. Por isso, na verdade este não é realmente um caso de conhecimento. [...] Logo, segundo Ryle, o homem honesto não é «minimamente especialista em nada». 
Peter Singer

Tal como Peter Singer, concordo que a distinção entre certo e o errado exige, na maior parte das vezes, informações e reflexões que nos permitam escolher a melhor hipótese moral. Consequentemente, estou a concordar com ele, quando se interroga porque razão o papel de um filósofo moral não é o mesmo de um pregador.

No entanto, uma vez mais, nem todas as pessoas pensam da mesma maneira, nomeadamente quando as questões que são respondidas através do uso de informações vão contra aquilo que foi pregado às pessoas e que elas acreditam desde que nasceram.

São bons exemplos disso, alguns casos mencionados em A Desilusão de Deus de Richard Dawkins. Este aborda o facto de famílias, cuja religião é o islamismo, processarem professores por ensinar teorias evolucionistas aos seus filhos. Teorias essas que vão contra aquilo que estas pessoas acreditam e que lhes foi pregado - o criacionismo.

O mesmo acontece com o meio onde fui criado. Se, tal como disse, houve coisas boas que me foram transmitidas, muitas outras não foram tão boas, pois não possuem qualquer tipo de fundamentação. São baseadas no desconhecimento e, em muitos dos casos, discriminantes para alguns dos seres que habitam no nosso planeta, sejam eles humanos ou não humanos.

De facto, sem querer exagerar, mas apenas demonstrar a diferença entre alguém que faz juízos morais com e sem conhecimento, deixo aqui um comentário recolhido no livro sobre os pregadores. Tal como Singer menciona, os pregadores fizeram tão adequadamente o seu trabalho, que as pessoas que os vêm como "lideres morais da comunidade" acabaram por entender por "moralidade" como um sistema de proibição de certas formas de prazer. 

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